“RRR”, na Netflix: é Bollywood, é alucinado e é muito legal
RRR: Revolta, Rebelião, Revolução não é um “filme de Bollywood”. O termo, popularizado no Ocidente por hits como Salaam Bombay (1988) e o britânico Quem Quer Ser um Milionário? (2008), se aplica somente aos longas gravados em hindi e produzidos pelo conglomerado de estúdios concentrados na metrópole de Mumbai. RRR faz parte de outra tradição: a de Tollywood, uma indústria igualmente poderosa (e, em alguns anos, mais prolífica) que se concentra no estado indiano de Telangana e produz longas falados em telugu, um idioma diferente do hindi.
A versão disponível tanto nos EUA quanto no Brasil pela Netflix é a dublada em hindi; em uma prática bem comum no mercado indiano, os próprios atores de RRR regravaram suas falas por cima do áudio original em telugu, o que faz com que o filme soe um pouco desajustado aos ouvidos treinados pela tradição ocidental. São especificidades culturais que (como, por exemplo, a diferença entre k-drama e dorama, sublinhada pelo sucesso de Round 6) fazem a diferença ao tentar decifrar o poder que uma obra como RRR, hit de bilheteria ao redor do mundo e aposta improvável para o Oscar 2023, tem de atravessar as fronteiras do contexto em que foi produzido.
Ver RRR é experimentar a desmistificação das ideias superficiais sobre o cinema indiano filtradas pelo Ocidente nas últimas décadas. Seja em Quem Quer Ser um Milionário? ou em produções que fazem referências passageiras à cultura cinematográfica do país, de Smash a Ms. Marvel e Eternos, parecemos ver o cinema indiano como uma recriação da tradição musical frívola do século passado de Hollywood, uma ressurreição de Busby Berkeley passada pelo filtro laranja que domina qualquer representação de “cultura exótica” no cinemão ocidental.
RRR é, sim, um musical. Há pelo menos duas grandes sequências de dança, uma delas embalando os créditos do longa, e ambas incluindo quebras de quarta parede por parte dos atores, armados de sorrisos calorosos, sem qualquer traço de ironia. Em outros momentos do filme, canções exultantes sobre amizade e baladas sentidas sobre resistência à opressão ajudam a levar a trama adiante por cima de montagens bem-humoradas ou cenas melodramáticas de revolta popular. Talvez o espectador acostumado com uma The Umbrella Academy ou um Deadpool se veja aguardando, após essas cenas, alguma piscadela cínica ou reconhecimento de que foi tudo um delírio… e esse espectador é deixado a ver navios.
RRR é, também, um filme de ação que privilegia o espetáculo. Feito pelo equivalente a US$ 72 milhões, nem um terço do que custam os blockbusters da Marvel ou de Star Wars, o filme não está interessado em esconder as próprias ambições, em construir um mundo que “pareça épico mesmo com um orçamento limitado” (chavão cansativo da crítica, do qual até eu sou culpado). O diretor e roteirista S. S. Rajamouli, engajado em um trabalho de mitologização de seus protagonistas,não abre mão de nenhum exagero: eles brigam em câmera lenta com tigres gigantes, destroem palácios colossais e seus jardins adornados com fontes, saltam de pontes para salvar crianças de explosões, e por aí vai.
O resultado dessa inflexibilidade é que RRR está, em termos de efeitos visuais, mais próximo de Machete do que de Vingadores. A sorte é que Rajamouli, um pouco como Robert Rodriguez, está mais interessado em extrair o potencial visual de cada tomada do que em nos fazer acreditar no que está acontecendo em tela. O astro N. T. Rama Rao Jr. saltando de um caminhão acompanhado de uma variedade de animais selvagens, ou saindo da água em câmera lenta, os pingos brilhando ao seu redor, é uma visão impressionante mesmo que seja – ou, talvez, justamente por que é – uma fantasia.
RRR é cheio desses momentos, que se entrelaçam perfeitamente com sua terceira grande missão: costurar um épico histórico utilizando a agulha da fantasia, assim arrastando um dos gêneros “mortos” de Hollywood (mas certamente não do cinema indiano, ou asiático como um todo) para o século XXI das narrativas fragmentadas e autoconscientes. O que S.S. Rajamouli consegue enxergar, ao contrário de um Ridley Scott ou dos irmãos Russo – e isso independe da qualidade dos filmes que eles produzem -, é que o interesse por integrar o cinema de gênero a moldes acadêmicos morreu lá no início da Internet, e que a preocupação com algo como choque de tons dentro de um épico de 3h de duração inexiste na era dos vídeos curtos do TikTok.
Nada disso significa, no entanto, que RRR é raso ou não tem propósito. Ao transformar dois dos revolucionários da independência indiana em seus super-heróis, Rajamouli cria um filme que demoniza sem escrúpulos o impulso racista do colonialismo e que, por outro lado, caricaturiza a raiva e a violência anticolonial sem demonizá-la. Aqui, armas de fogo são o instrumento da libertação, matar soldados britânicos é estar um passo mais perto da autonomia, e a força bruta é o único caminho para resistir a um vilão que não te enxerga como humano e que, portanto, não hesita em usar a força contra você.
Compare essa paz de espírito moral com as torturadas tentativas que o Marvel Studios faz de conciliar a sua visão pró-status quo com o politicamente correto do dia e você vai acabar chegando à conclusão que, narrativamente, RRR é um filme muito mais bem resolvido do que a média da produção hollywoodiana contemporânea. Ainda melhor, sua cristalina fúria política é entregue com um sorriso nos lábios e uma música no coração, vestindo um figurino exuberantemente colorido, seus tecidos estufados e chacoalhados pelo vento, enquanto seus heróis realizam feitos acrobáticos que deixariam os brutamontes hollywoodianos envergonhados.
A verdade, no final das contas, é que o Ocidente te preparou para todas as partes no cinema da Índia… menos para descobrir o quão bem elas funcionam juntas, e o quanto você vai querer apertar o play no próximo filme indiano depois das 3h de RRR.